quarta-feira, 19 de outubro de 2011

Para reflexão: "O Acossado - por Maria João Avillez, in: PUBLICO 12.10.2011"


Amarrado a uma maioria frágil, Jardim ficou indisfarçavelmente sozinho. Com ele, politicamente, só os últimos fiéis.

1. Na manhã de domingo, à mesma hora que Alberto João Jardim, em mangas de camisa e mais contente por fora do que por dentro, votava no Funchal, Pedro Passos Coelho e Miguel Relvas, sentados a uma mesa em S. Bento, redigiam um gelado comunicado que horas depois Matos Rosa, secretário-geral do PSD, leria ao país. Dois mundos em guerra. Mas a essa hora na Madeira ainda "se" acreditava. Estas eleições, dado o enquadramento eleitoral totalmente novo e sem paralelo no passado que as emoldurava, alimentaram - pela primeiríssima vez em 33 anos - uma real expectativa de mudança: acreditou-se noutro destino. Sei do que falo, conheço bem a Madeira, venho cá há muito, amo esta ilha, tenho aqui moradas, amigos e rotinas. (E nunca cometi o erro de confundir a Madeira com Jardim mesmo se em tempos, quer em público, quer em privado, o apreciei politicamente e não era agora, quando inteiramente o desaprovo, que jamais o negaria).
Uma vez mais no Funchal, onde vim a convite da RTP, falei com muita gente, desde a rua até aos líderes partidários, passando por gente, jovem e menos jovem, que nunca dependeu do Estado ou do "partido" e passando, claro, pelos putativos "sucessores" do líder do PSD. Procurei saber ouvir e por isso estive sempre a tropeçar na esperança real, concreta, física, de uma mudança trazida pelo fim da maioria absoluta social-democrata. Em Lisboa havia exactamente a mesma - todo o dia, num afã, se fizeram contas e telefonemas - e não fossem os cruciais erros políticos do PS, atirando, de bandeja, um último e salvífico deputado para a bancada de Jardim e a Madeira teria começado outra vida. Quem sabe, personificada politicamente por aquele movimento - ainda inorgânico, ainda na sombra - formado por bons quadros do PSD hoje desafectos a Jardim e dispostos a serem os interlocutores credíveis de Lisboa na transição de um presente de ficção para amanhãs que não cantarão; ou porventura por um Miguel Albuquerque, popular autarca do Funchal de conhecidas ambições e até hoje única voz audível, no arquipélago e fora dele, nas críticas ao PSD de Jardim. Ou ainda talvez por um dócil Guilherme Silva, que Jardim, se pudesse ainda visar uma "solução de continuidade", teleguiaria de longe.
Fosse como fosse e qual fosse o desfecho, era ainda pelo PSD/M que tudo passaria: ninguém o ignorava, ninguém o negava.
2. Apesar de para o mês que vem não haver aqui dinheiro para pagar salários, nenhum madeirense ficou a saber pela voz do chefe do governo e líder do PSD/M que o day after será negro. A campanha, confinada exclusivamente a comícios e inaugurações e à promessa de mais obra pública, não teve programa de governo, nem sombra de substância, nem sequer a mais ténue indicação ou alusão de que se viviam os últimos dias de folga e folguedos. E de tão sulfúrica, a irresponsabilidade do "hoje" - para todo o sempre, nunca o esqueçamos, indesligável da própria irresponsabilidade da República - impedirá porventura o futuro e a História de registarem aquilo que nesta ilha se fez com critério e oportunidade: mesmo se Jardim pensou sempre mais na Madeira do que nos madeirenses e se cuidou mais do desenvolvimento da terra que do desenvolvimento dos homens, é verdade que o arquipélago melhorou substancialmente até à entrada em cena da demencial vertigem do desnecessário: 11 campos de futebol num só concelho, marinas onde nunca houve barcos, centros cívicos fechados, centros comerciais por usar, túneis inexplicáveis, pedaços de estrada misteriosos - onde conduzem?
E que se passará na mente deste homem cansado travestido de Hugo Chávez para consumo madeirense? Excesso de permanência no poder? Uma insensatez afinal congénita mas dantes disfarçada por uma juventude enérgica? A embriaguez do posso, quero e mando? Uma solidão quase autista que o trancou num mundo que ele não viu desaparecer de vez? Em Dezembro entrevistei-o e percebi - e escrevi-o - que Jardim estava demasiado só e talvez não tivesse amigos. Só servos.
3. Mas neste last sprint, o destino foi-lhe cruel e a vitória do PSD (de deputados, não de votos) foi madrasta: amarrado a uma maioria frágil, Jardim ficou indisfarçavelmente sozinho. Com ele, politicamente, só os últimos fiéis, de poucos dotes governativos e pouco préstimo num contexto de pesada crise económica e financeira. E fora do universo da política, só quem de si depende materialmente. Desta vez e mesmo se a ideia de autonomia está ancorada no PSD e é indissociável dele, as zonas urbanas, as classes médias, as profissões liberais, as novas gerações - o voto mais esclarecido, numa palavra - oficializaram a despedida "deste" PSD, ensaiada aliás desde há uma década. E mesmo que o arauto da autonomia - e amanhã seu coveiro? - continue a ameaçar, insultar, iludir, fingir, chantagear, ocultar, como ainda ocorreu na aflitiva prestação televisiva de domingo, a hora é um limão ácido: os cortes salariais, a introdução de taxas, a redução das transferências do Estado, os despedimentos, o aumento dos ivas e outros ivas, o desemprego, estão a chegar de Lisboa.
"É uma ordem, a Madeira é Portugal, os sacrifícios são os mesmos cá e lá", dizia-me ontem um ministro que faz contas. Lisboa não cederá: a fome de ser "severo" começa a ser devoradora no Governo de Passos Coelho. Começou a guerra que Jardim já perdeu mesmo que tenha ganho agora, embora nos media nacional haja quem "comente" o contrário: ainda caberia ao líder madeirense a última palavra. Não cabe, Jardim finara-se politicamente já antes destas eleições. E mesmo que, igual a si mesmo, ele continue ameaçando e chantageando, amanhã ou daqui a um ano, sairá e quem sabe se pelas traseiras, quem diria? Acabou o seu tempo, exit jardinismo e o que ele representou e o que ele consubstanciou. Fechou-se um ciclo: Alberto João Jardim perdeu o lugar cativo. Destes escombros sobra porém o que acho mais grave: a guerra fomentada pelo chefe do governo e principal responsável político do arquipélago, contra o resto do país. Com persistência obsessiva e de forma soez, arrogantíssima e rasca. Uma indecência.
4. O PS cometeu o espantoso erro político de confundir a Madeira com Jardim, imprimindo cartazes com a terrorífica legenda "A Madeira faliu".
"A ideia foi minha" explicou-me um destes dias Maximiniano Martins, número 1 da lista socialista, conversando numa sala sobre o mar do Funchal: "Arrisquei um abanão, era preciso dramatizar..." Apesar porém "dos muitos documentos produzidos" pelo PS, de "um detalhado programa de governo" e da escolha de um elenco governamental "alternativo e aberto à sociedade", os socialistas não só não dramatizaram como a sua campanha, opaca e ausente, pouco se viu e não marcou: Maximiniano Martins é mais técnico que político, Jacinto Ferrão um líder sem chama e a passagem pela ilha de António José Seguro não comoveu militantes nem simpatizantes. Vão ter de começar outra vez tudo desde o princípio, mas agora a sério.
5. A esquerda à esquerda do PS fragmentou-se, os clássicos CDU e Bloco sumiram-se ou estão em vias disso. Ao lado - ou em vez deles? - surgiram pouco consistentes esboços de forças políticas, cuja relevância se aguarda, já que de momento não se lhes conhece uma ideia. Mas talvez animem um parlamento, estéril e inútil até hoje, por onde nunca passou a sombra de um debate digno desse nome.
6. Os últimos serão os primeiros: ver a campanha do CDS a desenrolar-se, em ruas, salas, terras e meios de comunicação, relevou de um quase milagre: já estamos pouco habituados a acertos políticos desta natureza e dimensão.
Houve política-política, propostas, ideias, frontalidade, e além disto que não é pouco, boas maneiras. O "tom", nunca abandonado, foi desde o início dado por José Manuel Rodrigues, o líder centrista na Madeira, ex-jornalista mas certamente muito mais político que escriba. A lista do CDS era a mais aberta do arquipélago, recheada de mulheres e homens com nome "feito" e (boas) provas dadas na vida profissional. Muito antes da voz das urnas era já vox populi que "seria o CDS a acolher os desiludidos ou revoltados do jardinismo." Foi. Se serão daqui em diante olhados como verosímil alternativa política, essa foi a história que começou no domingo passado na Rua da Mouraria, número 1, do Funchal.
7. Já noite fechada, na Avenida do Mar, por entre o mar laranja das bandeiras, uma multidão muito menos nutrida que habitualmente desde há 33 anos destilou ódio sobre "Lisboa", atirou sobre o "continente", acusou Passos Coelho de muitas maldades. Foram os últimos a saber que o mundo deles tinha acabado de vez.

Sem comentários:

Enviar um comentário